Pensamento incondicional: uma marca nos artigos de opinião da Olimpíada da Língua Portuguesa

01/11/2013 19:06

Fui convidado para ler e comentar artigos de opinião escritos por jovens e enviados à Olimpíada da Língua Portuguesa durante o Seminário que aconteceu em São Paulo no último dia 30 de Outubro de 2013. Foi uma experiência inesquecível. A seguir, leia a íntegra de minha fala.

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À minha frente o texto. Os textos. Há centenas deles. A letra cursiva desenhada com cuidado conduz o fio da história linha após linha, vai costurando o espaço em branco até preencher toda a página. Juntas, todas as letras, as palavras, as linhas, as páginas preenchidas com letra cursiva, formam uma única narrativa, o emaranhado que me envolve.
Para além dessa hipnótica visão emanam vozes. Vozes que gritam, outras que cochicham, que tagarelam umas com as outras. Vozes que muitas vezes silenciam. Sim. Nesse mergulho também ouço e até vejo o silêncio das muitas vozes que ficaram aprisionadas nas gargantas, sem vez, sem papel, sem forças para escapar e sair por aí.
O meu desejo é o novelo. Eu pego o fio das histórias pela mão e lá vamos para dentro, para cada vez mais fundo. Para Coronel Xavier Chaves, para Belém do Pará. Vamos entrando para Betim, para Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. Para Santa Cruz do Sul, para Sorriso.
Eu sigo as histórias dos cronistas do Brasil, a me contar sobre o lugar onde vivem. A minha voz é instrumento para a voz de muitos.
A fronteira entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, no Mato Grosso do Sul, "facilita o tráfico de drogas, o roubo de carros e motos, e a pirataria de CDs", quase a única alternativa que têm os casilheiros para sustentar-se e às suas famílias. Centenas de quilômetros distante dali, vivendo as mesmas mazelas, os camelôs, o comércio informal e a pirataria também tomaram conta das ruas centrais de Betim, em Minas Gerais, gerando controvérsia e polêmica.
Inexplicavelmente, os jovens de Sorriso estão apaixonados pelo Narguilé. Reúnem-se em grupos para fumar e soltar suas baforadas perfumadas pelos salões da cidade. São ingênuos, argumenta uma das cronistas, ao pensar que essa fumaça não lhes possa fazer mal. Por traz da atraente fumaça branca e úmida do Narguilé, há ainda mais males que nos cigarros. Sabia?
No município de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, não há sinal de celular. Pelo menos não existe sinal de qualidade. Como podem os jovens que ali vivem, isolados naquele local longínquo, fazer parte do Brasil grande, se estão assim tão... Desconectados?!  
A estudante de Curitiba gostaria que os moradores da cidade separassem o descarte doméstico, para que os aterros sanitários recebessem apenas materiais orgânicos, reduzindo o volume de lixo e aumentando a reutilização dos materiais. 
Já para seu colega, a prefeitura municipal não deveria investir na construção de parques urbanos para catadores trabalharem na organização dos restos de papel e papelão que recolhem pelas ruas: "Na minha opinião, o melhor aproveitamento para esse investimento seria em centros de capacitação onde os catadores de papel pudessem obter qualificação para o trabalho formal. Porque é de responsabilidade do governo e da indústria a coleta e a reciclagem do lixo produzido pela comunidade", ele diz.
Eu leio. Releio. O tempo passa sem que eu perceba. 
Sim, encontro-me em Curitiba, claro, mas já vou seguindo para Itaboraí. Ita-bora-aí, eu brinco… Mas, em Itaboraí se fala sério. Os 220 mil novos empregos previstos para o Pólo Petroquímico de Itaboraí serão promotores de exclusão ou de superação social? Escolha o que você prefere: "utopia, a melhoria da cidade; realidade, os impactos" sofridos por ela. O cronista interroga o leitor e pede sua atenção.
Eu penso e titubeio. Recordo do Tupi-Guarani. Da Língua Geral. Eu voo para Miranda, Cabrobó, Uirapuru, Tucuruí, Canguçu, Camaragibe…Eu jogo o jogo das palavras. Encho minha boca com Campo Largo, Campo Lindo, Campo Magro. 
Encontro a adolescente de Campo Magro. Ela está contente, há novas casas populares sendo construídas com recursos do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento. 
Já no município vizinho, de Campo Largo, “...grande parte dos agricultores que ali vivem não acredita na eficiência do novo código florestal brasileiro. Deve haver mais interesse na hora de formular as leis, de modo que os proprietários sejam ouvidos e respeitados, em vez de serem julgados como vilões". 
Uma opinião diferente daquela que vem do Pará, no outro lado do país. Para  o morador de Belém, a Amazônia segue desprotegida, com os governos fazendo leis que não funcionam e agricultores que não cumprem a legislação.
Eu sigo. Tento compor o mosaico das opiniões. Percebo indignação. Descubro revolta. Pensamento incondicional. "Se somos todos iguais, não entendo certas vantagens que os índios têm em relação aos brancos". "O governo poderia sim contratar um funcionário para fazer esses serviços, gastam tanto com outras coisas e a educação de qualidade, que eles pregam tanto, onde é que fica?". "Enquanto políticos brigam pelo poder e os zeros a mais em sua conta, a juventude se destroi, destruindo também o seu futuro." "Quando damos uma rápida volta pela cidade, vemos vários jovens nas ruas sem fazer absolutamente nada, e o pior é que eles não se preocupam se terão uma profissão bem sucedida, ou se vão apenas trabalhar em uma loja simples e ter uma motocicleta, como realização de sua vida." "O que quero é que nos preocupemos com o futuro da juventude em todo o país, que possamos ser ouvidos e não simplesmente ignorados pelos mais velhos que pensam que jovem não sabe de nada." "Entre os populares é notável o descontentamento com nosso serviço público de saúde. As reclamações vão desde a falta de médicos e medicamentos até a falta de educação dos médicos, isto quando estão presentes. Não é raro vermos um paciente sair da sala de atendimento revoltado com o tratamento rude e grosseiro que recebera do doutor. (...) Alguns dizem que não reclamam porque sabem que de nada adiantaria. Outros falam que se não morreram até agora podem esperar um pouco mais."
São muitas as contradições que se estabelecem entre a imagem de um país rico e de futuro e as muitas narrativas que aqui encontramos. Ao escrever sobre onde vivem, os textos destes jovens cronistas informam sobre a falta de perspectiva e condições de vida que os atormenta. Principalmente aos mais jovens. Aos mais pobres. Aos mais afastados dos processos de decisão e participação social. Há um país em busca de sua própria imagem. Em busca do seu próprio eu. Já não se vive no Brasil do passado, nem tampouco naquele país do Futuro que nos acostumamos a imaginar, projetando nossa própria imagem no espelho de próspero que impregnou o imaginário sobre o país desde os anos 1950. O agora é um tempo acelerado de transformações. Novo. Estranho. Atípico nos seus paradoxos. Nas suas incoerências. Na dispersão e na tensão de forças de permanência e de transformação, frente às quais nos encontramos estupefatos.  
O pensamento incondicional pode ser uma marca dos jovens e das juventudes, em sua faina de transformação do mundo. O pensamento incondicional está nas ruas do país. É o pensamento de quem já esperou por gerações e não está mais disposto a esperar. O pensamento do quero agora, do quero mais, do eu também faço parte. Ouça-me. Veja-me. Entenda-me. São gritos que ouço saltando destas páginas. São reclames em português castiço, quase incongruentes na sua sujeição às fórmulas para escrever e conseguir boas notas no Enem, nos vestibulares. Representam as opiniões em construção de uma geração de filhos de pais de baixa escolaridade. Opiniões em construção. Direcionadas ao universo dos letrados. A nós, que somos parte da máquina de exclusão social que os têm mantido sistematicamente sem espaço de manifestação. Esse pensamento incondicional obriga que nossas atitudes sejam revestidas de sentido. Por quê uma hidrelétrica de baixa produtividade, alto custo e grande impacto ambiental? Por quê facilitar e manter o trabalho de catadores de lixo, se o que deveríamos estar fazendo é promover o trabalho digno? Por quê refazer e replantar o que antes me foi pedido para limpar e cortar? Acostume-se ao novo tempo dos porquês.
O pensamento incondicional também é força de conservação. Berço de todos os “ismos”. Do moralismo de requerer para o indígena as mesmas obrigações que os demais brasileiros têm, sob a simples alegação que somos todos brasileiros. Do pessimismo, do fatalismo de em tudo ver um clichê, uma simples repetição de coisas já vividas. Do reducionismo, de tudo submeter à mesma chave analítica da corrupção política, do abuso de poder e da riqueza. Do autoritarismo, de não admitir as escolhas individuais nem compreender o descontrole dos nossos desejos, tão distintos. São opiniões sem o benefício da dúvida. Posições de primeira hora, sem revisão e aprofundamento.
"O projeto Quilombola, que é mais político do que social, tem ares socialistas e, ao que parece, servirá mais para satisfazer o ego dos 'esquerdistas' de plantão do que reparar um erro histórico", diz o jovem, sobre a garantia de uso da terra por populações quilombolas. 
"Vamos direto ao slogam: 'bom para passear, melhor para viver'. Mas, passear onde? Construir praças não é lá sinônimo de lazer. O que falta para os órgãos governamentais e, principalmente, à população, é tirar essa venda que lhes tapa os olhos para essa cidade." .
"A extração de Cassiterita do garimpo 'Bom Futuro' modificou ambientalmente e socialmente nossa cidade, gerando o intercâmbio de culturas, costumes e problemas. Acredito que a cobiça pela geração de riqueza fez com que os problemas sociais gerados pela excessiva aglomeração de pessoas fossem considerados irrelevantes para os governantes.".
"Se a comunidade xavierense continuar com esse ritmo de consumo, com o desperdício acentuado, está claro que, não só nosso dinheiro, mas principalmente nossos lençóis freáticos e reservas de água potável, irão por água abaixo."
Um quer terra, o outro felicidade. Um quer saúde e educação, enquanto o outro quer apenas uma praça. Juntas essas histórias também são a narrativa do desafio que é viver e participar de uma sociedade diversa e plural. Sentimentos que jovem campesina de Canguçu sintetiza bem:
"Está claro que o jovem do interior nem sempre tem acesso à escola; para poder estudar, ele precisa sair de seu ambiente, da sua cultura para ingressar num mundo que não é o seu e que é contra ele. Encontra uma cultura que despreza a sua; uma linguagem que nada fala de sua vida e suas coisas; um lugar onde não existem árvores, animais, a não ser gato e cachorro, não existe espaço ao ar livre, onde possa estar seguro, um lugar onde as casas são todas vizinhas umas das outras e o mais impressionante para tudo é necessário o dinheiro. Até a água 'é comprada'... Que mundo é esse?".
É o nosso mundo. É o nosso mundo. Eu lhe diria. Da pluralidade e da contradição. Onde há tanto ainda por construir. Não é preciso ter medo. O importante é ter compromisso e perseverar. Não desistir e quebrar, romper, sair do processo de suspensão de espaço e tempo em que estão parte dos textos analisados. Sujar as mãos. Descobrir outros pontos de vista. Transformar-se em primeiro lugar, depois também influenciar outros através do diálogo. Pronto, já temos um plano para seguir em frente.
 
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